Manaus

Como apps de entrega estão levando pequenos restaurantes à falência

Aos 49 anos, Ricardo Masironi desistiu de empreender. Desde novembro, o ex-dono de hamburgueria se tornou cozinheiro de uma cervejaria artesanal em Moema, zona sul de São Paulo.





Promoções agressivas de aplicativos geram queixas de restaurantes menores e acusações de dumping
Daniele MadureiraDe São Paulo para a BBC News Brasil
Masironi havia criado a Montanha Burger em 2016 e viu a chance de prosperar a partir do serviço de entrega de comida iFood, que estava expandindo as suas operações na mesma época.
Foi uma decisão acertada: com “propaganda” garantida por parte do parceiro de delivery, a Montanha Burger, que tinha um pequeno salão próximo ao metrô São Judas, também na zona sul da capital, chegou a despachar 90 entregas por dia, metade da sua demanda diária, com uma média de R$ 55 por pedido. Nada mau para um negócio de pequeno porte.
Mas, no começo de 2019, algo começou a dar errado: os pedidos deixaram de aparecer de uma hora para outra. Não foi uma redução gradual, fruto de um possível aumento de competição. Nem uma mudança de cardápio ou receita, que permaneceram exatamente os mesmos.
Masironi sequer teve a chance de sondar a clientela para saber o que estava acontecendo: no final de 2018, o iFood já havia deixado de fornecer o contato dos clientes aos restaurantes. A partir de então, o consumidor passou a ser do serviço de entrega — não importa quem faça a comida.
“Com o tempo, o iFood mudou radicalmente o atendimento aos restaurantes”, diz Masironi, que acabou fechando o salão em agosto do ano passado. Manteve apenas o delivery e enveredou pelos lanches mais baratos, vendidos a R$ 9,50.
Mas seus produtos não eram exibidos na seção de comida barata do iFood, de até R$ 10. Questionou o aplicativo, mas não obteve resposta conclusiva. Sem pedidos, Masironi não suportou os custos e encerrou definitivamente a operação em novembro.
O caso da Montanha Burger não é isolado. A reportagem conversou com outros oito donos de restaurantes, cafés, bares e lanchonetes que colecionam mais dissabores que vantagens após contratar os serviços do iFood.
As principais queixas se referem às “promoções malucas” propostas pelo aplicativo, do tipo “compre um lanche e ganhe outro”, ou a oferta sistemática de cupons de desconto de R$ 10, que acaba com as margens de lucro dos estabelecimentos.
“A minha porção de calabresa custa R$ 14. Eu tenho que pagar 27% sobre o preço do pedido para o iFood. Como é que eu vou dar um desconto de R$ 10? Vai me sobrar o quê?”, questiona Jane Bassoli, sócia do marido Alexandre Bassoli no Bassa Bar e Restaurante, na zona oeste de São Paulo.
Questionado pela reportagem, o iFood não respondeu se, ao formular as suas promoções, que são as que mais chamam a atenção dos consumidores, leva em conta o percentual de lucro dos restaurantes.

Na percepção dos estabelecimentos, a relação com o iFood começou a piorar na segunda metade do ano passado, quando o aplicativo investiu no Loop, o seu próprio “restaurante”. Por meio do Loop, o cliente programa a compra do almoço na véspera ou até as 11h do mesmo dia.
A primeira refeição é vendida a R$ 4,99, sem taxa de entrega. A partir da segunda refeição, o preço é R$ 9,99, também com entrega grátis. “Cinco reais é o preço de um salgado. Como a gente vai competir com isso? Como ter lucro e servir uma refeição decente a R$ 10, sem taxa de entrega?”, pergunta Alexandre Bassoli.
A reportagem apurou que, no caso do Loop, o iFood faz acordos com restaurantes que vendem comida por quilo. O cardápio do dia é definido previamente e, na véspera, o iFood encomenda ao restaurante a quantidade que será entregue, com base na demanda já agendada. Na prática, o aplicativo compra o aumento da capacidade do restaurante, a quem paga antecipado.
Na visão da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), a prática indica dumping — quando um fornecedor põe à venda um produto a um preço muito inferior ao do mercado. “O delivery é um ponto chave para a competitividade dos restaurantes, cada vez mais os clientes buscam conveniência”, diz Célio Salles, membro do conselho de administração nacional da Abrasel. “Mas o aplicativo não pode praticar subsídio na venda dos produtos, o que acaba deturpando o equilíbrio do mercado”, afirma.
A empresa se defende. “O iFood esclarece que age de acordo com a legislação aplicável na operação do Loop e em suas demais atividades e que não compactua com qualquer tipo de prática ilegal. O modelo de negócio desse serviço tem como base a utilização da capacidade produtiva ociosa de restaurantes e o agendamento de pedidos combinado à logística de entrega eficiente, o que resulta em refeições a preços mais acessíveis.”
A prática não envolve apenas os pequenos restaurantes. O franqueado de uma grande rede de fast-food, que não quis se identificar, afirmou que o aplicativo faz promoções em que oferece desconto de 50% sobre o preço do milk shake, por exemplo. “O aplicativo me paga o preço cheio do produto, mas vende pela metade”, diz o franqueado. Neste caso, porém, o restaurante não tem prejuízo — embora a venda na sua loja física seja canibalizada, já que o cliente vai optar pelo aplicativo.
“É muito positivo atender aos anseios dos consumidores, assim como gerar novas oportunidades de negócios e fomentar a economia. Mas isso deve ser feito dentro de um modelo sustentável, em que as regras estejam claras e sejam iguais para todos, com transparência”, diz a advogada Patrícia Peck, do escritório PG Advogados, uma das pioneiras no estudo do direito digital no Brasil.
Ela lembra que a competição costuma ser acirrada em novos mercados, o que acaba gerando benefício de descontos à clientela no começo, devido à guerra de preços. “Mas se a situação perdurar, gera um canibalismo do sistema, que logo alcança um desvio perigoso”, diz Peck, que preside o Instituto iStart de Ética Digital.

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