Amazônia

Cogumelos da Amazônia que produzem a própria luz e só brilham no escuro começam a ser desvendados pela ciência

Na região de São Gabriel da Cachoeira, município na fronteira do Amazonas com a Colômbia e a Venezuela, eles são os “iluminadores” das trilhas usadas pelo povo Baniwa nas noites sem luar

O brilho da biodiversidade ilumina a noite da Amazônia. Novas espécies de cogumelos bioluminescentes, que produzem a própria luz e só brilham na escuridão, têm sido descobertas por cientistas, num trabalho pioneiro. São criaturas ainda pouco conhecidas, que podem revelar alguns dos mecanismos que produzem a variedade das formas de vida amazônica e fazer avançar a tecnologia desenvolvida a partir desta riqueza natural.

De dia, eles passam quase despercebidos. É à noite que se revelam e transformam o chão da mata em céu de estrelas. Vários desses fungos já eram conhecidos pelos povos da floresta. Na região de São Gabriel da Cachoeira, município na fronteira do Amazonas com a Colômbia e a Venezuela, eles são os “iluminadores” das trilhas usadas pelo povo Baniwa nas noites sem luar.

— Os fungos são o princípio e o fim da vida na floresta — afirma a micologista (especialista em fungos) Noemia Ishikawa, líder do Grupo de Pesquisas Cogumelos da Amazônia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

Maioria feminina

O grupo liderado por Ishikawa descobriu cerca de 30 espécies (com e sem bioluminescência) nos últimos 12 anos. A mais recente, chamada Mycena lamprocephala, acaba de ser descrita na revista científica Phytotaxa, num estudo que teve como principal autora a micologista Célia Soares, outra integrante do grupo, composto quase que só por mulheres.

São elas que se embrenham pelas trilhas à noite em busca das chamadas “luzes vivas”. O cogumelo descrito por Soares não se mostra com facilidade de dia e levou três anos para ser classificado.

É uma minúscula criatura (o “chapeuzinho” mede menos de 10 mm) marrom, sem charme aparente, que se multiplica em folhas e galhos mortos. Mas à noite, ele emite luz verde, em pulsos, como uma pequena estrela. Como esses cogumelos se aglomeram em grande número, formam tapetes de luz.

A descoberta aconteceu na Reserva Biológica do Alto Cuieiras, a 60 quilômetros de Manaus. Apesar da proximidade com a capital amazonense, essa área permanece preservada, cortada por numerosos igarapés em florestas inundáveis (igapós) e de terra firme.

Bioluminescentes ou não, os fungos são essenciais para a existência da Amazônia. Ajudam a formar o solo, transformam tudo o que o morre em nutrientes para que plantas e animais possam viver. Seus esporos são tão abundantes que, segundo cientistas, contribuem para a formação de nuvens de chuva que irrigam a mata. Sua química complexa pode servir de inspiração e matéria-prima para a biotecnologia.

No mundo, os fungos estão em toda parte e, sem eles, não teríamos nem pão nem vinho. Bebidas alcoólicas e todos os alimentos fermentados são feitos com leveduras. O mercado de fungos comestíveis em 2024 deve chegar a U$ 69 bilhões no mundo.

O potencial é colossal na indústria farmacêutica. Eles são a base de algumas das drogas mais importantes, como penicilina e outros antibióticos da mesma classe, ciclosporina (imunomodulador para transplantes e doenças autoimunes), estatinas (controle do colesterol) e anticancerígenos, como o taxol. Além disso, cerca de 60% das enzimas industriais são geradas por fungos, assim como 15% das vacinas.

O micologista britânico Merlin Sheldrake estimou em seu livro “A teia da vida”, que podem existir 3,8 milhões de espécies (cerca de 10 vezes a mais que as espécies de plantas), mas apenas 6% foram descritas.

Na verdade, considerado o país com maior biodiversidade do mundo, o Brasil é terra incógnita no que diz respeito a muitas espécies. É o caso dos fungos. O inventário nacional mais recente lista 8.192 espécies de fungos (no mundo são cerca de 155 mil), mas esse número pode ser muito maior. Ishikawa observa que não existem muitos micologistas no país e as pesquisas de campo são poucas, por falta de gente e recursos.

Todo fungo importa e, por isso, trabalhos como os do grupo do Inpa abrem caminho para o conhecimento da floresta e o desenvolvimento da biotecnologia.

Mas, para ver a floresta brilhar, é preciso se aventurar à noite na mata. E isso atraiu a atenção da cineasta Iara Cardoso, que acompanhou o trabalho do grupo no documentário “A Era dos Humanos”, estrelado por Marcos Palmeira.

— É um sentimento estranho. Primeiro, de medo, porque precisamos desligar as lanternas e ficar na mais completa escuridão na floresta, cheia de sons e cheiros. É um mundo à parte. Mas ele se torna deslumbrante, quando começamos a ver as luzes vivas desses fungos. Fiquei maravilhada — afirma Cardoso.

Ishikawa começou a investigar os cogumelos que brilham fascinada pelo que lhe mostraram os povos originários da Amazônia. Para várias culturas, os cogumelos e suas luzes da noite tanto são aliados nas trilhas quanto suscitam mistérios espirituais. A ciência também se deparou com enigmas.

— Não sabemos, por exemplo, por que brilham. Pode ser para se defender ou para atrair alguma outra criatura que os beneficiem. Estamos começando a arranhar a superfície de mistérios tão grandes quanto a própria floresta — diz Ishikawa.

Micoturismo

Ela e seu grupo têm realizado ainda um outro tipo de trabalho com os fungos, o micoturismo, para gerar renda para comunidades amazônicas. O nome alude à micologia, o estudo dos fungos. E tem funcionado.

— Treinamos comunidades locais a guiar turistas para conhecer a diversidade de fungos amazônica. De início, muita gente implicou com o nome micoturismo, achavam que não ia pegar. Mas é questão de levar informação. O resultado tem sido ótimo, as pessoas ficam encantadas. Recebemos de executivos de grandes empresas a crianças — diz Ishikawa.

Os visitantes aprendem, por exemplo, a conhecer os fungos comestíveis. A riqueza de formas, aromas e sabores de fungos da Amazônia impressiona quem pensa que prato com cogumelo se resume a shitake e três ou quatro espécies encontradas em supermercados.

Também são levados a ver fungos que “explodem” ao ser tocados, lançando nuvens de esporos no ar.

Ishikawa diz que por trás do micoturismo e da identificação de espécies há também o esforço de formar cientistas especializados altamente qualificados na própria Amazônia.

— Nosso grupo faz desde análises moleculares à taxonomia (classificação de organismos). Também temos um forte trabalho de campo, quase todo feito por mulheres. São expedições pesadas, de muitos dias de caminhada pela selva, como a feita na Cabeça do Cachorro (Amazonas). Mostramos que é possível — frisa Ishikawa.

A reportagem é de O Globo e pode ser acessada pelo link abaixo:

https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/04/21/cogumelos-da-amazonia-que-produzem-a-propria-luz-e-so-brilham-no-escuro-comecam-a-ser-desvendados-pela-ciencia.ghtml

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