Justiça determina despejo do Aeroclube e confirma posse da Infraero no Aeroporto de Flores
Decisão judicial põe fim a disputa de quase dois anos e ameaça encerrar história de 85 anos da mais antiga escola de aviação da Amazônia

Em uma decisão que pode marcar o fim de uma história de 85 anos na aviação amazonense, a Justiça Federal determinou a desocupação imediata do Aeroclube do Amazonas no Aeroporto de Flores, na zona Centro-Sul de Manaus. A sentença, assinada pelo juiz Ricardo Augusto C. de Sales, da 3ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Amazonas, confirmou decisão anterior de julho de 2025 e reconheceu o direito da Infraero à posse integral do sítio aeroportuário.
A ordem de despejo, emitida no dia 14 de outubro, estabeleceu prazo de apenas cinco dias para a desocupação voluntária do hangar e demais áreas ocupadas pelo Aeroclube. Em caso de descumprimento, a decisão prevê multa diária de R$ 10 mil, além de autorização para uso de força policial e arrombamento, se necessário.
A medida surpreendeu a direção da instituição, presidida pelo aviador Cassiano Ouroso, que tenta reverter a decisão na Justiça e buscar apoio de autoridades locais e federais. O Aeroclube do Amazonas, fundado em 30 de abril de 1940, é reconhecido como um dos mais antigos e importantes centros de formação aeronáutica do país e, atualmente, é a única escola de aviação civil em operação no estado.
Disputa começou em 2023
O conflito entre o Aeroclube e a Infraero teve início em novembro de 2023, quando o Ministério de Portos e Aeroportos transferiu a administração do Aeroporto de Flores para a estatal federal por meio da Portaria nº 514. A decisão ocorreu após a Secretaria de Estado de Infraestrutura do Amazonas (Seinfra) comunicar, em maio daquele ano, a extinção do convênio de delegação que durava 35 anos.
A transferência da gestão aconteceu no contexto da privatização do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, em Manaus, cuja operação foi concedida ao grupo Vinci Airport. Com a concessão, cerca de 30 funcionários da Infraero que atuavam no Eduardo Gomes foram realocados para o Aeroporto de Flores.
Desde então, segundo o presidente Cassiano Ouroso, surgiram conflitos por valores de ocupação e cobranças retroativas que somam mais de R$ 1,3 milhão. “A Infraero passou a limitar o acesso às dependências e dificultar as atividades do Aeroclube, o que agravou a crise financeira da instituição nos últimos anos”, afirmou.
Fundamentos da decisão judicial
Na ação de imissão na posse movida pela Infraero, a estatal argumentou que a ocupação do Aeroclube era ilegal, pois não havia instrumento jurídico válido que autorizasse sua permanência no local desde a extinção do convênio. A Infraero destacou ainda a necessidade urgente de assumir a gestão completa para garantir a segurança operacional e a continuidade dos serviços aeroportuários.
A Justiça Federal reconheceu que a situação apresentava riscos significativos para a segurança da aviação civil. Em inspeção inicial realizada pela Infraero durante a transferência operacional, foram encontrados diversos problemas de segurança e infraestrutura no aeroporto.
Segundo a decisão judicial, após a determinação de julho de 2025, o Aeroclube seguiu usando o hangar e outras áreas para formar pilotos e guardar aeronaves, sem autorização da Infraero e sem pagar pelo uso do espaço. A estatal relatou casos de vandalismo, intimidação e resistência por parte de representantes do Aeroclube, situações que foram comunicadas ao Ministério Público Federal, à Polícia Federal e à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
“Quanto ao periculum in mora, está demonstrado pelas condutas reiteradas de resistência e intimidação atribuídas à parte executada e seus prepostos, com registro de ocorrências de vandalismo, ameaças a servidores públicos e impedimentos ao livre exercício da gestão pública aeroportuária”, destaca trecho da decisão.
Tentativas de defesa do Aeroclube
O Aeroclube do Amazonas tentou manter a ocupação por meio de ações judiciais que questionam a própria propriedade do terreno. A defesa alegou usucapião e contestou a validade da matrícula do imóvel em nome da União, feita durante a ditadura militar pelo decreto 78.911/1976, assinado pelo presidente Ernesto Geisel.
Segundo Francimar Sampaio, tesoureiro do Aeroclube e engenheiro civil, o decreto não obedeceu à Lei de Registros Públicos de 1973, que estabelece critérios específicos para registro de imóveis. “O próprio decreto exigia a inexistência de outros registros para o mesmo imóvel, o que não é o caso deste aeroporto, cujas matrículas originais estão em nome de Bernardino Sena Souza, Francisco Rodrigues de Souza Flores Filho e Arcênio de Figueiredo”, argumentou.
O Aeroclube sustenta que, embora a União possa reivindicar a posse do imóvel por interesse público, deveria pagar indenizações à entidade, que construiu todas as estruturas no local ao longo de 85 anos de existência, incluindo aproximadamente 15 hangares, dois prédios administrativos e a manutenção da pista de pouso e decolagem.
O Ministério Público Federal, contudo, manifestou-se em outubro de 2024 e janeiro de 2025 pela total improcedência dos pedidos formulados pelo Aeroclube do Amazonas, confirmando a decisão em favor da Infraero.
Importância estratégica do Aeroclube
O Aeroclube do Amazonas desempenha papel crucial na aviação regional amazônica. Como Centro de Instrução de Aviação Civil (CIAC), é a única escola em operação no estado, formando pilotos privados e comerciais. A instituição também oferece cursos de paraquedismo e aeromodelismo.
Além da formação de profissionais, o aeroporto abriga empresas de táxi aéreo essenciais para o transporte na Amazônia, onde muitas comunidades só têm acesso por via aérea ou fluvial. Segundo o ex-presidente Luiz Mário Peixoto, o Aeroclube é fundamental para o serviço aeropostal do estado, suporte médico e aeromédico, remoções de pacientes graves e transporte de cadáveres do interior.
“Até na eleição o Aeroclube influencia porque as urnas com os votos do interior chegam a Manaus pelo Aeroclube, que dá suporte aos táxis aéreos. Também passa por lá o envio de medicamentos ao interior. Durante a pandemia, o Aeroclube foi fundamental para atendimentos”, afirmou Peixoto.
A entidade gera cerca de mil empregos diretos e indiretos e opera voos regulares para municípios do interior do Amazonas. O aeroporto possui pista de pouso e decolagem com 830 metros de comprimento por 30 metros de largura, além de uma pista de 150 metros para aeromodelismo.
Impacto financeiro e operacional
A sobrevivência financeira do Aeroclube dependia principalmente das mensalidades dos alunos dos cursos de aviação e dos aluguéis dos hangares. Com a chegada da Infraero, a entidade perdeu essas fontes de receita, enfrentando dificuldades até para pagar colaboradores.
A Infraero passou a cobrar pelo uso das dependências com base em preços médios praticados no aeroporto e em terminais similares sob sua gestão. A estatal também licitou o serviço de estacionamento, que não era cobrado anteriormente, e anuncia novas licitações para hangares ocupados por empresas com contratos antigos.
Empresários que operam no local relataram que os pousos e decolagens agora custam entre R$ 400 e R$ 450, além de cobrança pela permanência das aeronaves no pátio de taxiamento. Esses valores, inexistentes na gestão anterior, aumentaram significativamente os custos operacionais de todas as atividades realizadas no aeroporto.
Posicionamento da Infraero
Em nota, a Infraero afirmou que visa proteger o interesse público, garantir o respeito ao ordenamento jurídico e assegurar que o aeroporto seja operado e receba melhorias de forma adequada e segura. A empresa ressaltou que sempre esteve aberta para discutir a regularização documental, as condições de operação, a segurança e a remuneração pelo serviço prestado.
“A Infraero, como ente estatal e sob regramento jurídico do setor, não escolhe os concessionários que atuam no aeroporto, mas é obrigada a cumprir as normas que regem as licitações. A Companhia lamenta que o assunto precisou ser judicializado e, agora, não há alternativa a não ser cumprir a decisão da Justiça”, declarou a estatal.
A empresa destacou ainda que inexiste qualquer decisão judicial que impeça a cobrança pela exploração das áreas públicas sob sua gestão, e que as cobranças estão sendo emitidas conforme a legislação vigente.
Futuro incerto
A decisão judicial coloca em risco o futuro da mais tradicional escola de aviação da região Norte. Deputados estaduais tentaram, sem sucesso, articular em 2023 a reversão da transferência de gestão com o ministro de Portos e Aeroportos, Sílvio Costa Filho, e com o presidente da Infraero, Rogério Barzellay.
O coordenador de instrução de voo, Erasmo Melo, alertou para o impacto da mudança: “Se a Infraero assumir completamente a administração, teremos mais custos, pois a instrução de voo acarreta um custo grande. O Aeroclube tem se empenhado para manter a escola de voo e precisa continuar gerindo o espaço para que as atividades possam continuar”.
A direção do Aeroclube realizou coletiva de imprensa para detalhar os próximos passos e buscar apoio público. A entidade tenta reverter a decisão, mas o prazo exíguo e as manifestações contrárias do Ministério Público Federal tornam a situação cada vez mais delicada para a instituição que marcou a história da aviação amazonense por mais de oito décadas.