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INDICADORES ECONÔMICOS

A reestruturação dos Correios não pode abandonar as áreas indígenas e regiões remotas do Brasil

Modernização da estatal deve preservar função social essencial de conectar populações isoladas à cidadania plena

Moradores de Iauaretê, comunidade indígena em São Gabriel da Cachoeira Amazonas-Foto Laio de Almeida/ out 2019/Folhapress

A anunciada reestruturação dos Correios traz consigo uma preocupação fundamental que não pode ser ignorada: o futuro das agências em áreas indígenas do Amazonas e nas regiões mais longínquas do Brasil. Com mais de 360 anos de história – criados em 1663 ainda no Brasil Colônia – os Correios representam uma das instituições mais antigas e perenes do país, tendo chegado à Amazônia ainda no século XIX, durante o ciclo da borracha, quando a integração da região ao restante do Brasil tornou-se estratégica para o desenvolvimento nacional.

Essa longevidade histórica não é mero detalhe nostálgico. Ao longo de mais de três séculos, os Correios sobreviveram a mudanças de regime, crises econômicas e transformações tecnológicas justamente por compreenderem sua missão que transcende a lógica comercial. Na Amazônia, onde a presença postal se consolidou há mais de 150 anos, as agências tornaram-se parte do tecido social das comunidades, muitas vezes sendo a única instituição federal presente em vastas áreas do território.

Nas comunidades indígenas do Amazonas, onde rios são estradas e distâncias se medem em dias de viagem, as agências dos Correios funcionam como verdadeiras embaixadas da cidadania. São elas que garantem o recebimento de medicamentos, documentos oficiais, materiais escolares e benefícios sociais. Em muitos casos, o carteiro é o único representante do poder público que chega regularmente a essas localidades, levando não apenas correspondências, mas a presença simbólica e prática do Estado brasileiro.

A lógica puramente mercadológica que orienta reestruturações empresariais não pode ser aplicada indiscriminadamente a um serviço que possui dimensão constitucional e histórica tão profunda. Fechar agências em áreas remotas sob argumentos de déficit operacional seria não apenas condenar populações inteiras ao isolamento, mas também romper com uma tradição centenária de integração nacional que os Correios ajudaram a construir desde os tempos do Império.

É importante reconhecer que manter essas agências representa, sim, um custo adicional. Transportar correspondências por barcos que navegam dias pelo Solimões ou pequenos aviões que pousam em pistas improvisadas não é economicamente vantajoso. Mas esse é exatamente o tipo de investimento que diferencia um serviço público essencial de uma operação comercial comum. É o preço da inclusão, da soberania nacional e do compromisso com a universalização de direitos – um compromisso que os Correios mantêm há mais de três séculos.

A experiência internacional oferece lições valiosas. Países como Canadá e Austrália, que também enfrentam o desafio de servir populações dispersas em vastos territórios, mantêm subsídios específicos para garantir a presença postal em áreas remotas. Reconhecem que alguns serviços transcendem a lógica do lucro e constituem obrigações fundamentais do Estado para com seus cidadãos.

Qualquer projeto de modernização dos Correios deve, portanto, estabelecer salvaguardas claras para a manutenção das agências em territórios indígenas e regiões de difícil acesso. Isso pode incluir a criação de um fundo específico para subsidiar essas operações, parcerias com outros órgãos públicos para compartilhamento de custos, ou mesmo a classificação dessas agências como serviço essencial, protegido de cortes orçamentários.

Além disso, é fundamental envolver as comunidades afetadas no processo de discussão. Lideranças indígenas, ribeirinhos e moradores de áreas remotas devem ter voz ativa na definição de como os serviços postais continuarão a atendê-los. Suas necessidades específicas e conhecimento do território são insubstituíveis para encontrar soluções criativas e efetivas.

A história dos Correios na Amazônia é também a história da integração nacional. Desde os vapores que subiam o Amazonas no século XIX até os barcos e aviões de hoje, a instituição adaptou-se às peculiaridades regionais sem jamais abandonar sua missão. Agora, em pleno século XXI, não podemos permitir que uma reestruturação orientada por métricas puramente financeiras desfaça esse legado de séculos.

A reestruturação dos Correios pode e deve buscar maior eficiência, incorporar novas tecnologias e adaptar-se às demandas do comércio eletrônico. Mas não pode fazê-lo às custas daqueles que mais dependem de seus serviços. Preservar as agências nas áreas indígenas e regiões longínquas não é apenas uma questão de justiça social – é honrar uma tradição de mais de três séculos e reafirmar o compromisso do Brasil com a integração nacional.

O verdadeiro teste de uma reestruturação bem-sucedida não será apenas o balanço financeiro da empresa, mas sua capacidade de continuar chegando onde mais ninguém chega, mantendo viva uma tradição que começou em 1663 e que, na Amazônia, já completa mais de um século e meio de serviços prestados à população.

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