Agnaldo Rayol embalou um país nostálgico com sua voz de barítono
Artista, morto nesta segunda-feira, foi pioneiro ao gravar músicas de rock, mas se firmou ao interpretar canções italianas
Agnaldo Rayol, morto nesta segunda-feira (4), gravou seu primeiro álbum no simbólico ano de 1958, considerado o marco inicial da bossa nova, com o lançamento de “Chega de Saudade”, no álbum “Canção do Amor Demais”, de Elizeth Cardoso.
Foi também o ano da primeira conquista da Copa do Mundo de futebol, episódio que, no contexto dos anos JK, ajudava a criar o imaginário do Brasil como um país moderno, do futuro. No entanto, embora em seu primeiro álbum Rayol já tenha gravado canções de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, é possível afirmar que seu canto remetia justamente a um país nostálgico, “cheio de saudade”.
Assim como Cauby Peixoto, Rayol gravou pioneiramente rock e apresentou ao longo de sua carreira um repertório elegante de crooner, cantando standards do cancioneiro estadunidense, sambas-canções, boleros, serestas e fados.
Cua marca registrada, contudo, foi a gravação de canções italianas. Nas décadas de 1960 e 1970, antes da hegemonia quase completa das canções anglófonas, era comum cantores românticos gravarem versões de canções francesas e italianas.
Alguns deles, como o próprio Rayol, seu xará Agnaldo Timóteo e Jerry Adriani, participaram da Jovem Guarda, em um momento em que a dita MPB se firmava como herdeira da bossa nova e das músicas de festival, em contraposição ao iê-iê-iê.
Nessa disputa estética, mas também política, o rock e a música romântica eram tachados de alienados. Por outro lado, o tipo de canto de Rayol, operístico, era considerado melodramático, ultrapassado, exagerado e “cafona” pela elite intelectual acadêmica de esquerda.
Coube contraditoriamente aos tropicalistas, que também reivindicavam a bossa nova, resgatar em seu álbum manifesto, no simbólico ano de 1968, “Coração Materno”, canção de Vicente Celestino, uma das influências de Rayol.
Neste mesmo ano de 1968, Rayol gravou o álbum “As Minhas Preferidas — Na Voz de Agnaldo Rayol — Presidente Costa e Silva”, em que homenageava o ditador, inclusive estampando sua imagem na capa do disco.
O repertório, baseado no gosto musical do general, incluía, curiosamente, “Carolina”, de Chico Buarque. Há que se ter em mente, porém, que a ditadura militar contava com forte apoio popular, ao contrário do que diz uma narrativa construída a posteriori e que idealiza o povo brasileiro como vítima do regime e os artistas da chamada MPB como ícones da resistência.
Da mesma forma, cantores da MPB também gravaram músicas ufanistas e foram acusados de adular o regime militar. Após passar os anos 1970 e 1980 sem tanta visibilidade, gravando poucos álbuns, o grande renascimento musical de Rayol veio em 1994, ajudado provavelmente por dois fatores.
Em 1990, Luciano Pavarotti, Plácido Domingo e José Carreras formaram Os Três Tenores e fizeram sucesso mundial cantando árias famosas, mas também músicas populares, incluindo “Aquarela do Brasil”. Da mesma forma, no começo dos anos 1990, o tenor Andrea Bocelli era catapultado à fama mundial. Cantar músicas populares com empostação operística, acompanhamento de orquestra e participações especiais de astros pop, de certa forma, voltou à moda.
A nostalgia era o espírito do tempo. Não à toa, também no início dos anos 1990, Luis Miguel começou a gravar álbuns cantando boleros clássicos, apresentando essas músicas a uma nova geração.
O fator decisivo para a volta triunfal de Rayol, no entanto, foi uma velha receita conhecida da indústria musical brasileira —a inserção de músicas em trilhas sonoras de novelas. Assim, em 1993, “Em Nome do Amor”, composição de César Augusto e Piska, também gravada pela dupla sertaneja Leandro e Leonardo, entrou na trilha sonora de “Renascer”, na voz de Rayol.
Na novela seguinte de Benedito Ruy Barbosa, o “Rei do Gado”, de 1996, Rayol fez a ponte entre Vicente Celestino e os sertanejos Chrystian e Ralf, cantando na trilha sonora, com ainda mais sucesso, “Mia Gioconda”, com participação especial da dupla e fazendo a junção entre o italiano e o caipira, o “erudito” e o popular, o tradicional e o moderno.
A consagração maior veio em 1999, quando, em dueto com a jovem soprano Charlotte Church, Rayol podia ser ouvido todas as noites na abertura da novela “Terra Nostra”, do mesmo Benedito Ruy Barbosa. Composta por Antônio Scarpellini, Luiz Schiavon e Marcelo Barbosa , o tema inédito “Tormento d´amore” reinventava uma tradição.
Cantor romântico e de músicas católicas, ator galã e autor de trilha de telenovelas, artista que nutria um especial carinho pelo público idoso, cantando “as canções bonitas de antigamente”, Rayol fica como símbolo de um Brasil nostálgico e profundo, o mesmo de Vicente Celestino, que escutava a “Ave Maria” nos alto falantes das praças e uma seresta nos coretos, mas também pop e internacional como Luciano Pavarotti.
A matéria completa é da Folha de São Paulo e pode ser acessada pelo link abaixo