Indígenas criticam conciliação sobre marco temporal no STF e devem abandonar negociação
Movimento vê racismo e inconstitucionalidade e prepara saída de mesa criada por Gilmar Mendes
O movimento indígena pretende deixar a mesa de conciliação sobre o marco temporal criada pelo ministro Gilmar Mendes no STF (Supremo Tribunal Federal) por ver inconstitucionalidade e racismo institucional no processo.
O grupo se articula por meio de uma série de associações regionais e nacionais. Quatro de seus integrantes afirmaram à reportagem do jornal A Folha, sob reserva, que a maioria quer deixar o processo de conciliação. Está marcada para esta quarta-feira (28) a segunda sessão no Supremo.
Haverá uma assembleia, na manhã desta quarta, para oficializar este posicionamento. Um quinto integrante do movimento afirma que não é impossível que haja alguma reviravolta, mas entre as possibilidades discutidas há o plano de elaborar uma carta ou manifesto para ser lido na abertura da sessão, anunciando o abandono.
A posição formada em favor da saída da mesa argumenta que a permanência nas negociações representaria o aval do movimento a um processo de violência contra os povos. Já quem discorda diz que a permanência pode ser uma oportunidade para expor as violações da negociação.
Oficialmente, Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e as outras instituições não comentam o tema. O STF foi procurado, mas não se posicionou.
A expectativa é que o governo Lula (PT) mantenha seus representantes na mesa —dos ministérios dos Povos Indígenas e da Justiça, da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e da AGU (Advocacia-Geral da União).
O Supremo, por sua vez, deve seguir com as negociações até chegar a um acordo, mesmo sem o movimento indígena.
O marco temporal é a tese, defendida pelos ruralistas, de que devem ser demarcadas como terras indígenas apenas aquelas ocupadas pelos povos na data da promulgação da Constituição de 1988. Juristas e ativistas ligados ao tema discordam e alegam que, segundo a Carta Magna, o direito indígena à terra é originário e, portanto, anterior ao próprio Estado brasileiro.
Dessa forma, a demarcação deve partir de estudos antropológicos que determinem a área de direito para cada povo, a partir de seus costumes e histórico de ocupação. Assim, qualquer marco temporal seria inconstitucional.
O agronegócio afirma, por sua vez, que estabelecer o marco temporal traria segurança jurídica às terras. Em 2023, o próprio Supremo julgou a tese e a derrubou.
Em resposta, a bancada ruralista conseguiu aprovar no Congresso Nacional um projeto de lei que instituiu o marco temporal, além de abrir brecha para a flexibilização da proteção aos povos e a exploração de seus recursos naturais.
O governo Lula chegou a vetar o projeto, mas os vetos foram quase todos derrubados pelo Congresso, novamente sob liderança da bancada.
A partir daí, uma série de ações foram apresentadas ao STF tanto para validar como para derrubar a lei.
O ministro Gilmar Mendes, então, aglutinou alguns desses processos e determinou a abertura da mesa de conciliação. Essa decisão passou a ser criticada pelo movimento indígena, que não via como possível uma conciliação acerca do que eles consideram como inconstitucional.
Antes do início das sessões, a Apib apresentou ao presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, sete requerimentos —e entende, agora, que eles não foram acatados. O movimento pediu, por exemplo, que a lei fosse suspensa antes do início das conversas.
Também reclamou que diversos processos que correm atualmente na corte e são relacionados ao marco temporal não estavam no escopo da mesa —e, ao contrário, ações de outros assuntos acabaram aglutinadas.
“Sentar à mesa com a corda no pescoço, em nome de uma suposta ‘civilidade’, da cultura dos não indígenas, representa, para todos da Apib, um ato de extrema violência que rememora os tempos de uma política integracionista”, afirmou a entidade no ofício, em 5 de agosto.
Citando casos de violência contra indígenas em disputas de terras, a Apib completou que “o processo conciliatório proposto representa a consolidação da violação dos direitos dos povos indígenas”.
A primeira sessão aconteceu no início de agosto com participação da Apib, mas sob críticas e com brecha para que o STF inclusive reveja sua posição contra o marco, firmada em 2023.
Os indígenas afirmam que os juízes alocados para a mesa não têm familiaridade com a temática e que a negociação não fora conduzida em pé de igualdade entre as partes, e com outros interesses por trás.
Também reclamam da falta de transparência do processo e reforçam que foram barrados de entrar no Supremo —não foi a primeira vez que isso aconteceu.
Também entre representantes dos ruralistas há o reconhecimento de que será difícil chegar a qualquer consenso.
Durante a primeira reunião, Gilmar Mendes afirmou que achava “curioso observar” que a instauração da comissão tivesse gerado protestos de vozes que “rotulam esta mesa de debates como bazar de negócios”.
“Esquecem que não há verdadeira pacificação social com a imposição unilateral de vontades e visões de mundo. Ignoram que sem diálogo honesto, tolerância e compreensão recíproca nada surgirá, muito menos a afirmação de direitos fundamentais”, afirmou à época.
“Escapa-lhes também que, independentemente do resultado das discussões travadas nesta comissão, seu conteúdo será submetido ao crivo do plenário do Supremo Tribunal Federal. E esta corte já comprovou, sobretudo nos últimos anos, que não hesita na proteção de direitos fundamentais”, completou o ministro.