Amazônia

Glocal debate impacto da crise socioambiental para crianças e adolescentes

Garimpo ilegal em áreas distantes de centros urbanos favorece exploração sexual de menores, alerta pesquisadora

Saberes periféricos: debate reuniu jovens dos igarapés de Manaus com Raull Santiago, do Complexo do Alemão — Foto: Letícia Lopes

“Absoluta prioridade”. A única vez em que a expressão aparece na Constituição Federal de 1988 é ao abordar a garantia de direitos – dever da família, da sociedade e do Estado – às crianças e adolescentes brasileiros. Foi a partir desta premissa que um dos painéis da Glocal Experience Amazônia destrinchou a realidade dos jovens da região e os impactos das crises socioambientais nesse grupo.

Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a socióloga Betina Barros apresentou detalhes de um estudo da entidade focado na realidade das crianças afetadas pelo garimpo ilegal na Bacia do Rio Tapajós, principalmente na cidade paraense de Itaituba, na divisa com o Amazonas. A chamada “cidade pepita” tem hoje a maior área garimpada do país, com cerca de 450 mil km².

Ela destacou que áreas de garimpo ficam muito distantes das zonas urbanas e, portanto, de equipamentos públicos, o que deixa uma população grande restrita de direitos básicos. Além disso, o acesso de profissionais de saúde e segurança a esses locais também é complexo, em alguns casos apenas possível de avião ou helicóptero, recursos inexistentes para muitos órgãos públicos.

— Onde tem garimpo, tem droga, bebida e prostituição. O resultado (da falta do Estado) é uma presença de exploração sexual e casamento infantil muito alta, apesar de isso não significar registros criminais. Isso porque as denúncias não chegam e a polícia sequer consegue fazer o registro —observa Betina.— A gente ouve a Polícia Civil dizendo que não tem acesso aos locais, não tem sequer viaturas que consigam enfrentar essas estradas e para que as equipes atuem de forma preventiva. O relato é de que os policiais só chegam quando a menina já está grávida, ou seja, quando o crime de estupro de vulnerável já ocorreu.

A partir dessas dificuldades de infraestrutura enfrentadas pelos agentes públicos, Assis Oliveira, coordenador na Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, chamou atenção para a necessidade de as políticas públicas voltadas às populações amazônicas serem pensadas considerando as condições da região.

Ele deu como exemplo os veículos destinados aos conselhos tutelares de todo o país. Até recentemente, diz, carros populares eram distribuídos para os municípios – o que funciona nas grandes cidades, mas é inviável para localidades da Região Norte, onde as equipes precisam enfrentar longas distâncias em estradas precárias:

—Aqui as nossas ruas são os rios, e isso é importante para política pública. Nosso kit de equipagem, a partir dos próximos editais, já vai vir com barco e caminhonete com tração. Só assim a gente consegue chegar onde precisa.

Segurança na Amazônia

A adequação dos recursos às necessidades locais também foi abordada num painel que reuniu representantes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal. Delegado regional da PF no Pará, Pedro Neto mostrou a importância das investigações mais profundas no combate ao garimpo ilegal, para que se configure não apenas os crimes ambientais – que têm penas mais brandas –, mas também outros ilícitos, como a formação de quadrilha e a lavagem de dinheiro.

Ao detalhar a ação, ele afirmou que, com a falta de recursos, é preciso “selecionar melhor” onde a corporação vai dedicar seus esforços:

— Nossos recursos são escassos, tanto de efetivo quanto financeiros. Isso não quer dizer que a gente vira as costas para as pequenas infrações. Mas, buscando eficiência e melhores resultados, a gente tem que selecionar melhor as operações e diligências.

O papel das autoridades na defesa do território amazônico e na proteção dos recursos naturais também foi pauta de uma das mesas do último dia de programação, com representantes da Marinha, Exército e Aeronáutica.

O vice-governador do Amazonas, Tadeu de Souza, mediou a conversa, e afirmou que a presença e a capilaridade das Forças Armadas no estado são fundamentais para o desenvolvimento da população. Chefe do Centro de Coordenação de Operações do Comando Militar da Amazônia, o general de brigada Carlos Alberto Rodrigues Pimentel comentou sobre a importância da articulação entre os órgãos que atuam na região para a proteção do território e dos povos indígenas e ribeirinhos.

— Cada um dos órgãos tem os seus propósitos, e existem pontos em comum em que as Forças podem atuar. Acredito que isso tem melhorado muito nos últimos anos, com operações coordenadas em que as decisões são tomadas em conjunto, com cada instituição colocando suas dificuldades e prioridades. Penso que o que precisa melhorar são ações mais duradoras — afirmou o general.

‘Periferias trazem soluções’

A Glocal Experience é uma iniciativa da Dream Factory, com correalização da Editora Globo e da Fundação Rede Amazônica e os parceiros oficiais de mídia O GLOBO, Extra e Valor. O evento faz parte do plano preparatório da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP-30), que acontece em 2025 no Pará. A plataforma de discussões volta ao Rio para uma segunda edição carioca entre os dias 22 e 25 de novembro, na Marina da Glória.

Conectando as edições manauara e carioca da plataforma de sustentabilidade, a mesa “Desenvolvimento entre Favelas e Igarapés” reuniu no último dia de programação lideranças das periferias amazônicas e o ativista Raull Santiago, do Complexo do Alemão. Eles trocaram experiências sobre as realidades de suas comunidades e defenderam que as periferias sejam vistas não como um celeiro de problemas, mas de soluções

– Nosso saber desses lugares constrói soluções diversas para as realidades de desigualdade. Num ambiente onde os direitos mais básicos não são garantidos, em coletividade a gente constrói nossas próprias soluções – disse Santiago.

Liderança climática do século XXI pela Youth Climate Leaders e membro da COP das Baixadas – como são conhecidas as comunidades de Belém, no Pará –, a engenheira sanitarista e ambiental Walesca Queiroz deu como exemplo as iniciativas tocadas pela Rede Jandyras, da qual também faz parte.

A iniciativa de mulheres paraenses lançou medidas como a Agenda Climática para Belém, que sistematiza dados de problemas da região, como acesso à água e ao saneamento. Outra solução é a campanha Guardiãs do Rio, que tem como objetivo entender as histórias das mulheres que vivem às margens dos cursos d’água da capital paraense.

Ela também citou a COP das Baixadas, que em fevereiro focou na periferia como protagonista do debate climático.

— A COP que acontece no mundo não foi feita para a gente. A periferia é sempre excluída das pautas climáticas e precisa estar nos centros das discussões. A população jovem dessas regiões precisa falar como especialistas de onde vem, principalmente nos espaços de tomada de decisão — defendeu Walesca.

Por Letícia Lopes* — Manaus

*A repórter viajou a convite da Glocal Experience.

A matéria originária é de O Globo e pode ser acessada pelo link abaixo:

https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/08/29/glocal-debate-impacto-da-crise-socioambiental-para-criancas-e-adolescentes.ghtml

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