Brasil

Fifa abraça demandas das seleções, mas impõe ‘militância controlada’ na Copa do Mundo feminina

Na estreia do Mundial da Austrália e Nova Zelândia, a capitã Sam Kerr pode usar a braçadeira da inclusão, que remete à campanha “OneLove”, proibida pela entidade

Fifa criou oito braçadeiras para a Copa do Mundo feminina para abraçar as demandas das federações Divulgação/Fifa

A partir desta quinta-feira o mundo estará de olho na Austrália e na Nova Zelândia, e Sam Kerr, a capitã da seleção australiana, conhecida como Matildas — que estreia diante da Irlanda, em Sydney, às 7h (de Brasília) —, está ciente do potencial da Copa do Mundo de 2023 para deixar um legado em diversas frentes: desde a luta LGBTQIAPN+ à equidade de gênero, passando pela questão aborígene. Mas a militância será controlada. A Fifa não abriu mão das suas regras estabelecidas e, assim como no Mundial do Catar, não permitirá o uso das braçadeiras do movimento “OneLove”, iniciado pelas federações de futebol europeias na Eurocopa masculina de 2021.

“A Copa do Mundo pode ser um “momento Cathy Freeman”, disse ela ao site oficial da Fifa, referindo-se à velocista que foi o primeiro aborígene do país a ganhar o ouro olímpico nas Olimpíadas de Sydney em 2000 e que, na comemoração, carregou a bandeira do seu povo. Hoje, ela comanda uma fundação dedicada à educação de crianças aborígenes e das ilhas do Estreito de Torres. Esta população representa 2% da população adulta da Austrália, mas 27% da população carcerária.

Sam Kerr tinha 7 anos quando Cathy levantou a sua bandeira. Agora, a capitã da Austrália, assumidamente homossexual, sabe que terá a mesma vitrine para discussões como orientações sexuais e igualdade salarial. Porém, ela não se surpreendeu com a decisão da Fifa, que anunciou ainda no mês passado que não autorizaria o uso das braçadeiras do movimento que luta contra a LGBTfobia e o racismo, por exemplo.

O regulamento da entidade prevê que as capitãs de equipes utilizem apenas os itens fornecidos pela Fifa. Caso a determinação seja desobedecida, a regra diz que árbitro retire a jogadora de campo para que ela possa “corrigir a vestimenta”. Se a determinação continuar a ser desrespeitada, a atleta pode ser repreendida e receber punição a critério do árbitro.

—Para ser sincera, eu meio que esperava, não esperava que eles mudassem (a regra). Obviamente, adoraríamos usá-la. Mas acho que você viu na Copa do Mundo masculina, Harry Kane (capitão da Inglaterra), por exemplo, se ele tivesse usado no primeiro jogo, poderia levar um cartão amarelo. Se ele tivesse recebido um cartão amarelo no jogo, ele teria sido expulso. Então para mim não vale o risco de colocar o time em risco, de colocar o torneio em risco, de colocar tudo em risco. Haverá várias oportunidades em que poderemos usar nossa voz e haverá várias oportunidades em que usarei minha voz — afirmou Kerr, em entrevista coletiva após a convocação da seleção da Austrália para o Mundial.

Mas as cores do arco-íris poderão ser vistas no braço de Sam Kerr hoje. A entidade reconheceu o erro cometido no Catar, país que criminaliza a homossexualidade e é pouco transparente quando o assunto são os direitos humanos. Antes que nova polêmica se instalasse às vésperas da competição, a Fifa buscou todas as 32 federações participantes para tratar da questão. Nas reuniões, apresentou suas campanhas institucionais, que contam com consultoria de agências da ONU, e tomou nota das preferências de cada seleção.

Por fim, decidiu oferecer oito braçadeiras às capitãs — uma para cada fase e para cada jogo das semifinais— que contemplam as mais diversas causas: inclusão, povos indígenas, violência contra a mulher, equidade de gênero, educação, paz e fome. As seleções podem seguir a ordem, optar por uma única braçadeira ao longo da competição ou a usar a campanha geral da entidade “Futebol Une o Mundo”. No Catar, por exemplo, foram quatro opções e não havia tanta flexibilidade.

A da inclusão, por exemplo, que será a oferecida na primeira rodada do Mundial, é livremente inspirada no modelo da campanha “OneLove”. Traz as mesmas cores que misturam as causas das identidades sexuais, orientação sexual, raça e herança. No rol de braçadeiras da entidade, não há uma especificamente para o combate ao racismo, cuja campanha estará presente nas placas ao redor do campo.

O envolvimento das seleções na decisão final foi bem recebido pelas federações nacionais.

“Antes da Copa do Mundo, a Fifa, as federações e as capitãs discutiram isso. Então nós estávamos envolvidos nos planos. Para nós, trata-se da mensagem, não da etiqueta ou da marca. E todos nós apoiamos a mensagem”, disse a Federação de Futebol da Holanda, em nota enviada ao GLOBO.

A técnica da seleção da Inglaterra, atual campeão da Eurocopa, considerou boa a solução encontrada pela entidade.

—Acho que com as braçadeiras, o time pode ter voz —disse em entrevista à SkySports.

A postura da Fifa, é claro, faz eco às sociedades que estão recebendo a Copa do Mundo feminina. Há seis meses, a entidade não tomou as rédeas da polêmica junto ao organizador local que conseguiu a proibição da venda de bebida alcoólica dentro dos estádios, ainda que uma cervejaria fosse a principal patrocinadora do evento. O Catar sequer tinha uma seleção feminina. Tanto Austrália quanto a Nova Zelândia apresentam avanços em diversas lutas. Em ambos, o casamento homossexual e o aborto são legalizados, por exemplo. No âmbito do futebol, a federação australiana tem como meta a paridade de gênero — atualmente, cerca de um quarto dos mais de 1 milhão de jogadores de futebol do país com mais de 15 anos são mulheres, de acordo com dados do governo.

—Achei muito legal da fala das representantes dos governos da Austrália e da Nova Zelândia, organizadoras da Copa do Mundo. Elas se referiam ao legado de temas e não do legado físico, o que se construiu ou reformou para receber o evento. Elas se referiam às discussões que o evento traz consigo. Os governos usarão essa Copa do Mundo como um legado para sua própria sociedade, usarão o evento para falar sobre diversidade, para falar sobre equidade de gênero, sobre diversos assuntos importantes. Eles têm feito diversos eventos para falar sobre essas discussões. A Copa do Mundo é encarada como um motivo para se discutir diversas coisas. O futebol não é apenas o esporte jogado em 90 minutos. É muito mais do que isso, é uma discussão de sociedade. A Copa do Mundo terá discussões de vários assuntos porque em ambos países esses assuntos estão em uma discussão muito mais avançada. Esse sim é um legado — disse Ana Lorena Marche, supervisora de seleções femininas da CBF.

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