Essa é a COP dos nossos sonhos’, diz Manoel Cunha líder extrativista visto por comunidades como sucessor de Chico Mendes
Gestor do ICMBIO, Manoel Cunha defende fortalecimento de organizações amazônicas

Da janela do monomotor, o líder extrativista Manoel Cunha observa o que restou de floresta entre a capital de Rondônia, Porto Velho, e Lábrea, município dos mais violentos da região Norte, no Amazonas. A área é uma das frentes do Arco do Desmatamento, onde a Amazônia é comida pelas bordas por grileiros, madeireiros e outros criminosos.
“Seu Manoel”, como é reverenciado nas comunidades ribeirinhas, diz que nunca sentou em um banco de escola. Entende a urgência climática com a clareza de quem vive o dia a dia de território ameaçado. Eleito pela comunidade como gestor da Reserva Extrativista do Médio Juruá, em Carauari, no Amazonas, Manoel descende de seringueiros que desbravaram o rio Juruá nos tempos áureos da borracha, enriqueceram seringalistas e cresceram em meio à desigualdade social, inexistência de Estado e de direitos humanos. Ingressou jovem em movimentos sociais da Igreja Católica e iniciou a luta, ao lado de outros, pela criação da reserva extrativista. A Resex saiu em 1997, com 286 mil hectares, e Manoel tornou-se uma liderança histórica. É hoje gestor de uma unidade de conservação referência no manejo do pirarucu, coleta de andiroba e murumuru, castanhas, açaí e borracha.
Manoel presidiu a principal organização social da região, a dos produtores rurais de Carauari, Asproc, e começou a se tornar conhecido na Amazônia e fora dela. Foi presidente entre 2005 a 2012 do Conselho Nacional de Seringueiros, o CNS, hoje Conselho Nacional das Populações Extrativistas. Muitos comunitários o enxergam como o sucessor do mais famoso fundador do CNS, Chico Mendes, o líder seringueiro assassinado em 1988 por defender a floresta do avanço da pecuária ilegal.
São 13 anos sem o senhor visitar essa parte da Amazônia. O que viu de diferente?
Uma das coisas que mais me estranhou nesse percurso foi a quantidade imensa de floresta queimada. É desanimador, porque quando se queima uma floresta, queima todo o ecossistema. Tem um monte de coisa que arde no fogo que a ciência nem descobriu. O Brasil e o planeta perdem sem nem saber. E vira efeito dominó, porque quanto mais floresta queimada, menos floresta para fazer a transformação do clima. O cenário que se aproxima é de mais seca, mais incêndio, mais destruição. E isso vai deixando a gente que vive no ambiente, e do ambiente, nervoso. É muito triste.
A preocupação é pela mudança do clima?
Quando os peixes não conseguirem se reproduzir mais por causa do efeito das mudanças climáticas, que aqueceu a água do rio e do lago além do ponto, quando as fruteiras que geram o nosso alimento e a nossa economia não conseguirem produzir mais, onde nós vamos ficar? Vamos para a cidade, para fazer o quê? Nós não sabemos lidar com o mundo urbano. Eu nunca fui ao banco da escola, mal sei assinar meu nome. Imagino que como eu tem milhares de pessoas. Vou virar mendigo numa cidade? Estou feliz porque a gente está navegando no rio Ituxi para visitar a Comunidade Floresta e discutir iniciativas de sustentabilidade com produtos madeireiros e não madeireiros. Está aqui o próprio governo, com o ICMBio.
Como o senhor enxerga a pressão da pecuária na floresta?
O gado é muito perigoso, porque você vai levando para onde quiser. Quando não tem mais pasto suficiente e se aumenta a pecuária, nesse aumento são estradas de seringa que estão lá, são castanhais que estão lá, são comunidades tradicionais que estão lá. E o gado destrói isso. O gado gera riqueza para uma pessoa, mas gera pobreza, fome, perda de cultura, perda de conhecimentos tradicionais para milhares de famílias.
O senhor vive a centenas de quilômetros daqui, também no Estado do Amazonas. É diferente?
É. O Médio Juruá é ainda um grande coração verde. Só ao redor da cidade, você vê campos de gado. Imagino que a gente está na direção certa de fazer com que as políticas públicas consigam avançar. A gente aprendeu e desenvolveu meios de vida de forma sustentável que têm trazido melhoria da qualidade de vida. O primeiro passo para isso foi a defesa do território, com a criação da Resex. O segundo, o fortalecimento da organização comunitária. Criamos organizações dos produtores rurais, mulheres agroextrativistas, óleos vegetais.
Esse foi o outro passo?
Deixamos de ser meros produtores de matéria-prima para produzir e gerir. Não temos mais atravessador. Somos nós e o consumidor final. No manejo da pesca, por exemplo, temos frigorífico alugado em São Paulo com os nossos peixes. Fazemos o manejo do pirarucu e beneficiamos. Sai de lá no pacotinho de 1kg, numa caixa de 20 kg, para qualquer canto do mundo. Temos três barcos pesqueiros. E assim vai. Não é fácil eliminar o atravessador. Mas quando se cria uma unidade de conservação, se empoderam as pessoas.
Estão começando agora com o manejo florestal?
Sim. Já vimos que vender prancha de madeira não adianta, porque vamos competir com a ilegalidade. Estamos trabalhando em objetos e artefatos como pratos e travessas de angelim, roxinho, macacaúba. Cada peça dessas custa R$ 200. Estamos agregando valor.
Qual é a maior ameaça?
Mudanças climáticas. Em 2020, a água do rio não chegou a centenas de lagos da margem. Imagine quanto de peixe deixou de existir. Em 2021, foram sete meses de alagação. Matou muitas árvores, inclusive seringueiras. Em 2023, a água custou a ir embora, a semente de murumuru caiu na água, o rio levou. A comunidade perdeu mais de R$ 1,5 milhão em contratos. Este ano a semente de andiroba caiu em maio, quando cai em fevereiro. A andiroba caiu junto ao murumuru. Caiu tudo ao mesmo tempo e não tinha secador. Em 2024, como a seca foi muito grande, cinco comunidades não fizeram o manejo do pirarucu. Deixaram de arrecadar mais de R$ 600 mil. E o que acontece quando se tem contas em casa para fechar?
A COP 30 é importante?
Para nós, comunidades da floresta, é a COP mais importante de todos os tempos. Nunca vivemos um momento tão crucial do clima como agora. Nas COPs de antes tinha muita fala de pesquisador dizendo “se nada for feito, daqui a tantos anos…” Estamos vivendo isso hoje. Não é mais fala de cientista, é vivência real. A mudança climática está causando grandes danos sociais, ambientais e econômicos. É a COP dos nossos sonhos. Estamos esperançosos de que vai sair algo.
A matéria originária foi publicada em O Globo online e pode ser acessada pelo link a seguir: