Amazônia

‘Rios voadores’ de Terras Indígenas da Amazônia irrigam 80% de todas as áreas agropecuárias do Brasil

Estudo do Instituto Serrapilheira concluiu que esses corredores de umidade são essenciais para levar chuvas a estados que respondem por 57% da renda agropecuária brasileira, ou cerca de R$338 bilhões

Vista aérea do Rio Itacoaí, na Terra Indígena Vale do Javari – Foto:Bruno Kelly / Amazônia Real

Há décadas, a ciência sabe que corredores de umidade que surgem da floresta amazônica são essenciais para a formação de chuvas no resto do Brasil. Agora, um novo estudo rastreou o caminho dos chamados rios voadores a partir das Terras Indígenas (TI) da Amazônia e identificou que eles “irrigam” até 80% das áreas com atividade agropecuária do país, em especial no centro sul. Essa dinâmica representa de 9,1% a 24,6% de toda a precipitação anual de nove estados, que respondem por 57% da renda agropecuária brasileira, ou cerca de R$338 bilhões.

Os rios voadores são massas de vapor de água no ar que se formam pelo processo de evapotranspiração das árvores, que absorvem água da chuva e depois a devolvem à atmosfera. Devido ao seu tamanho, a floresta amazônica é capaz de formar extensos corredores de umidade, que conseguem abastecer quase o Brasil inteiro com chuvas.

De forma inédita, o Instituto Serrapilheira quantificou, rastreou e fez a interseção dos rios voadores com as terras agropecuárias brasileiras, a partir do cruzamento e análise de diversos dados, como os do MapBiomas, IBGE e Funai.

— A influência dos rios voadores já era conhecida, então o que fizemos foi usar dados já disponíveis desde 2020 para quantificar de fato essa influência, não só do ponto de vista da água, mas também da economia, em uma abordagem interdisciplinar – explica a matemática e meteorologista Marina Hirota, professora na UFSC e uma das cientistas que assina a nota técnica. — Ou seja, mais do que mapearmos as chuvas que atingem as áreas de agropecuária, convertemos esse dado em valores econômicos.

O primeiro passo da pesquisa foi rastrear o caminho dos rios voadores formados nas mais de 450 Terras Indígenas (TIs), que ocupam 23% da Amazônia Legal, através do modelo matemático UTrack, validado em outras pesquisas do campo. Com base nas estatísticas médias de 1991 a 2020 – período que abrange épocas de secas, cheias, El Niños e La Niñas, inibindo distorções nos dados – da média de precipitação nas florestas, velocidade e direção de ventos, os cientistas conseguiram calcular as moléculas de água dispersadas nesses territórios. E, com o uso do UTrack, rastrearam seus caminhos até que virem chuva em outros pontos do país.

Para identificar as áreas onde a chuva de fato caiu, os pesquisadores utilizaram mapas de cobertura e uso da terra do MapBiomas, o que permitiu a conclusão de que 80% das áreas agropecuárias brasileiras são abastecidas pelas chuvas dos rios voadores de TIs amazônicas. Além de quantificar a contribuição dessas chuvas para a média de precipitação anual de todos os estados: 18 estados mais o Distrito Federal estão total ou parcialmente na área de influência dos rios voadores dos TIs da Amazônia. Somente parte do Nordeste e um pequeno trecho do Amapá não são influenciados.

Porcentagem de contribuição dos Rios Voadores para a precipitação anual

Paraná: 26,4%

Acre: 24,4%

Mato Grosso do Sul: 21,5%

Rio Grande do Sul: 18,4%

Santa Catarina: 16,5%

São Paulo: 16,3%

Rondônia: 11,1%

Amazonas: 9,2%

Mato Grosso: 9,1%

A pesquisa ainda deu “um passo além”, como definiu o hidrólogo Caio Mattos, pesquisador de pós-doutorado na UFSC, integrante do grupo de pesquisa em ecologia tropical do Serrapilheira. Esse passo foi o cruzamento com os dados do IBGE, do Censo Agro de 2021, para dimensionar o impacto das chuvas na renda agropecuária brasileira.

Os rios voadores representam pelo menos 9% das chuvas anuais de nove estados: Paraná, Acre, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rondônia, Amazonas e Mato Grosso. Em 2021, a renda econômica do setor agrícola desses estados somou R$338 bilhões, ou 57% do total do país.

— Se você retira essa chuva, tem ameaças sérias à produção agrícola. O que se desdobra em impactos para a segurança alimentar e segurança econômica. Se aumentar o desmatamento, vai impactar a exportação de grãos, a produção de pequenos produtores rurais e o preço dos alimentos. O corredor de umidade também alimenta rios que dão em hidrelétricas, afetando a energia do país — explica Caio Mattos, que lembra que o estudo analisou os rios voadores apenas das TIs. — Se analisar o resto da Amazônia, a contribuição é muito maior.

Impactos do desmatamento

A nota técnica do Serrapilheira destaca que as TIs funcionam como uma barreira ao desmatamento. Dos 4,4 milhões de hectares desmatados na Amazônia entre 2019 e 2023, apenas 3% (130,2 mil hectares) ocorreram dentro de TIs. Mas, no resto do bioma, o cenário não é o mesmo. Com isso, a contribuição dos rios voadores vem diminuindo. Estimativas recentes indicam que as áreas de agricultura de sequeiro (sem irrigação) já sofrem 37% de déficit hídrico médio, impedindo a plena produção, por exemplo.

Para Mattos, a o propósito do estudo é alimentar o debate público, reforçando a importância da preservação ambiental e seus diferentes impactos. Ele cita, por exemplo, o julgamento da constitucionalidade da lei do marco temporal (lei 14.701/2023), uma tese que prevê que os povos indígenas teriam direito de ocupar apenas as terras que já ocupavam ou disputavam na data da promulgação da Constituição de 1988. O STF determinou que a lei é inconstitucional, mas a tese também pauta uma PEC, que pode ser votada no Congresso.

e aprovado, o Marco Temporal poderia abrir espaço para outras ocupações nas Terras Indígenas, o que significaria mais desmatamento.

— Existe um descompasso entre o que a ciência fala e o que setores da economia pensam. Espero que esses dados possam facilitar o entendimento, ainda há trabalho para que o assunto seja bem assimilado pela sociedade. Precisamos de uma conversa embasada em fatos — diz Mattos.

Além de Hirota e Mattos, assinam a nota técnica os cientistas Paulo N. Bernardino, Bruna Stein, Gabriela Prestes Carneiro, Julia Tavares, Adriane Esquivel-Muelbert, Silvio Barreto, André Braga Junqueira e Arie Staal. O estudo foi desenvolvido no escopo de um grupo de pesquisa em ecologia tropical do Serrapilheira.

A matéria completa é do jornal O Globo e pode ser acessada pelo link a seguir

https://oglobo.globo.com/google/amp/um-so-planeta/noticia/2024/12/04/rios-voadores-de-terras-indigenas-da-amazonia-irrigam-80percent-de-todas-as-areas-agropecuarias-do-brasil-entenda.ghtml
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